sábado, 17 de janeiro de 2015

Carne - Parte 2 - Na Escola

“Vamos, Pedro! Vai se atrasar!”
“Estou indo!”, bradou da escada. “Agora é só submeter e pronto! Terminei”. A madeira da escada, também feita em laboratório, parecia amortecer o caminhar firme de Sandra que subia em busca do filho, “já?”, perguntara. “Sim! Me deves um sorvete, mamãe”, respondia o menino colocando a mochila nas costas. “Na volta da escola passamos na Alaska e tomamos um Ice Cream Soda. O que acha?”, “eba”, gritou o garoto.
Um beijo no centro da testa e uma palmada singela no bumbum empurravam Pedro para dentro do colégio. Nessa parte da capital do país todos eram bem de vida e as escolas espetaculares. São Paulo tinha muitos problemas, mas quando transformada em capital, estes foram parcialmente sanados.
O sinal tocou. O último sinal. Pedro já estava na porta quando sua professora apareceu. Dona Julianita parecia jovem, o que de fato era. Já viúva, não havia tido filhos. Seu marido morreu na guerra contra a Bolívia. Dedicou-se à lecionar desde então. “Quase, Pedro. Quase!”, disse ao passar entre a porta e o menino, “sente-se! Vamos.”.
“Pois bem! Como todos sabem ontem foi o dia da Caça. Espero que todos tenho submetido o texto ao Governo”. Um sonoro ‘sim’ reinou na sala, mas uma voz irrompeu o coro, “acho que a polícia de vigilância vai vir buscar o Pedro, professora. Ele deve ser Carnivorista como o Tio”, disse Gustav, menino gordinho que sentava no fundo da sala. Pois a sala, em uníssono, iniciou os gritos: “Carnivorista! Carnivorista! Carnivorista!”. “Chega!”, Interrompeu Julianita, “Vocês não tem vergonha? Estou retirando um ponto da média da sala inteiro só por essa ato de barbarismo que cometeram. Parecem selvagens. Oh, Shiva!”. Pedro não ouviu o que a professora resmungava. Quando a sala começou a perseguição ele já havia a deixado. Estava no jardim. Chorando. “Por quê? Por que, comigo?”. Por lá ficou todo o primeiro período.
Talvez fossem 11 horas ou talvez menos. O céu paulista sempre nublado dificilmente ajudava a solucionar essa questão, mas breve seria o recreio. Pedro tinha fome. Seu estomago roncava, mas a vergonha e o medo de entrar o consumiam mais que a fome. Foi quando um pássaro, sim um pássaro pousou bem em sua frente. De penas amarelas e andar retilíneo, a pequena ave andava, bicava, se aproximava e se afastava de Pedro. Ora Bica, ora anda, ora Bica, ora para... “Mas o que está fazendo aqui esse animalzinho?”, se perguntava Pedro. Animais urbanos não eram mais permitidos. Só em zoológicos ou reservas autorizadas. A ave pouco se importava. Ora bica, ora anda, ora bica, ora para... Pedro olhou a ave e sentiu medo. A ave olhou Pedro e também sentiu medo. Tomados pelo medo resolveram ser um só corpo. Pedro prendera a ave em sua mão com tanta força que quebrou seu pescoço e triturou seus frágeis ossos. Mordeu ave sem pensar. A criança era completa. Saciada em seu desejo mais primitivo por sangue. Desejo que todos tentavam reprimir. O sangue jorrava. Descia da boca do menino. Pobre ave, Pobre Pedro.
O sinal tocou. Era Recreio. As crianças correram para o jardim antes mesmo do barulho ensurdecedor do apito se esvaísse. Gustav a frente puxando aquelas pequenas pessoas famintas. Todas as lancheiras tinham um suco de caixinha, uma fruta [transgênica] e um sanduiche com carne de laboratório. O gosto era o mesmo. Os pestinhas se separavam em grupos, sentavam na grama ou nas mesinhas de pedra. E conversavam sobre tudo: Sexo, política, religião. Aos 12 anos uma criança já ascendera a bastante conhecimento nas escolas paulistas, mesmo assim não deixavam de brincar e se divertir com seus jogos de realidade avançada. Porém, Gustav viu que Pedro estava encolhido no meio do jardim. Tinha algo na mão, mas não viu o que era. De certo era seu almoço. “Ei, seu babaca chorão! Foi só uma brincadeira mané”, bradou Gustav. Mas Pedro não se intimidou. De uma vez só saltou do chão e mirou os olhos de seu rival. O sangue estava em suas mãos, em sua boca e a metade da ave que sangrava ao seu pé. Gustav deu um grito de horror e desmaiou. Estava se deparando com a face da morte, de quem havia zombado minuto antes. Sua professora presenciou a cena e tratou de, com seu avental, cobrir o rosto de Pedro e retira-lo do Jardim antes que outra criança vissem e se assustassem. Na parte interna encaminhou ele ao vestiário masculino: “Ande! Lave-se!”, ordenou. Assim ele o fez. Depois um uniforme foi providenciado.  Uma maca passava por ele, era Gustav desmaiado indo para a enfermaria. O gosto de sangue ainda premiava a boca do menino. Suculento, primitivo, estupendo e errado. Sabia que aquilo podia se tornar um passaporte para um reformatório, ou quem sabe, um expulsão da nação; “Seus pais estão a caminho, espere aqui”, disse Julianita.
Passaram-se trinta e dois minutos, quarenta e sete segundos e os pais de Pedro chegaram. O tempo é interminável quando temos medo, por isso a precisão. Ambos passaram pelo filho com uma cara fechada e se dirigiram a diretoria. A porta ficou semiaberta, feito convidativo para que Pedro os bisbilhotasse. Ao pé da porta, só sua professora falava: “Trabalho a muitos anos com ensino. Sei que é natural que algumas crianças tenha esse tipo de comportamento. São desejos primitivos que nem todos aprenderam a superar. São Homens Hipercontemporâneos com uma alma primitiva. O filho de vocês é muito inteligente, mas infelizmente ele não pode ficar com as outras crianças. É um risco! Ou ele se adequa as normas deste país, ou encaminharemos ele a um reformatório, sem a autorização de vocês pais. E tenho dito!”. “Senhorita Julianita, peço que...”, “SENHORA! Sou uma mulher viúva Doutor Altinori”, esbravejou a professora. Altinori continuou: “Pois bem, Senhora Julianita, meu cunhado sofre do mesmo mal. Está preso das cadeias de reabilitação do Estado Federal. Eu e minha esposa Sandra não queremos essa vergonha para nossa família...”, Sandra estava aos pranto enquanto o marido falava. “Veja, professora...”, ele continuou, “... sou um homem de confiança das indústrias Friedman, não posso ter um filho carnivoristas. Vamos interna-lo o quanto antes...”, “NÃAAOOO!!!”, Pedro se mostrava. Estava aos prantos assim como sua mãe. “BASTA!”, bradou seu pai.

Carne - Parte 1 - Dia da Caça

O pequeno Pedro apertava a mão de sua mãe com tanta força que quase lhe quebrara os dedos. Seu rosto estava vidrado no que estava vendo. Seus poros se abriam para que liquido salgado do suor pudesse descer-lhe a face. Estava nervoso, era fato. Mas a experiência sempre foi necessária desde que imposta pelo governo à dez anos. O “Dia da Caça” não era uma data comum. Ela é, e sempre será necessária, para que todos os jovens, meninos e meninas, soubessem o quanto o ser humano havia sido cruel. Pelo menos era assim que queria o Governo. “Matar para comer, mamãe? Que coisa horrorosa!!”, disse Pedro. Já havia soltado a mão. “A caça teve papel importante em nossa história, meu filho”, disse Sandra, sua mãe. Andaram mais um pouco sobre o salão do museu da caça, lotado naquele dia como de costume. Pararam em frente de um vídeo. Um selvagem caçando um gnu com lanças e flechas. “Veja Pedro!”, apontou-lhe a TV, “Veja como os selvagens se comportavam. Mas nós devemos muito a eles. Somente com a ingestão de carne animal é que pudemos desenvolver nosso intelecto ao ponto de não precisarmos matar nenhum ser vivo para comer carne”.
Estamos em 2155, São Paulo. Os dias são constantemente nublados. A garoa, da “terra da garoa”, se tornara acida, não tanto quanto um limão, mas o suficiente para destruir, em médio prazo, pontes, prédios e estatuas. As pessoas andam rápido na calçada. Sempre andaram. Nos telões o noticiário apresenta as mesmas notícias: corrupção do governo, crise hídrica se agrava com o entupimento de umas das tubulações da transposição do rio Amazonas, um presidente mulçumano na França assume o cargo, uma colônia em Marte insiste em ter independência da Terra, etc. etc. etc.
Pedro movimenta as pernas rapidamente para acompanhar o caminhar de sua mãe. No alto do seus 12 anos muitas questões lhe vinham a mente. “Como assim, caçar para comer? Que absurdo! Que errado! Por que, errado?”, pensava. Entraram no metrô enfim. “Precisamos que você faça um redação quando chegarmos em casa, Pedrinho. Depois vamos submeter ao governo e então estaremos livres dessa obrigação. Aí depois podemos ir numa sorveteria, o que acha?”, Sandra falava sempre sorrindo, como se incentiva-se o entusiasmo do filho, “Acho bem legal, mãe”, Pedro retribuiu o sorriso. Toda criança de 12 anos devia, por decreto, submeter um redação na qual compartilhava com o Estado sua experiência no “Dia da Caça”. Era uma forma do Estado controlar este impulso nos mais jovens, pois, quando adultos, devem permanecer a se alimentar da carne de laboratório: mais saudável, pois não tem gordura, e mais “ética” pois não precisou de nenhuma morte para sua criação. Há um motivo político também. O partido que governa o Brasil do Sul é dono do único frigorifico de carne de laboratório do país: as Industrias Fridman, para quem o pai de Pedro trabalhava. O Doutor Altinori não cortava carnes em um frigorifico, mas sim criava sabores em um laboratório. Frango, Porco, Boi, Pato. Até tartaruga, quem diria? Todos os pedaços feitos a partir da extração da célula tronco dos animais, de forma indolor e sem mortes. A Organização das Nações Unidas aprovava e incentivava o mundo a adotar a carne de laboratório, fato que aumentava exponencialmente nos países pelo mundo e que enchia o bolso de algumas empresas ao redor do globo.
Era Domingo. Altinori não tinha ido trabalhar. Estava em casa descansando quando viu Pedro atravessar a sala correndo e pular no seu colo, “oi, papai! Como foi seu dia?”, disse o menino. “Descansei bastante, mas queria ter acompanhado vocês no museu. Como foi?”, indagou. “Ele tem muitas dúvidas, querido. Talvez você possa ajuda-lo”, era Sandra, entrando pela porta da sala e tirando o casaco preto, assim como seus cabelos que contrastavam com a pele branca. “Evidente que sim”, respondeu seu esposo e começou: “Aposto que viu muitos vídeo de caça, de sofrimento animal e de morte, correto?”, Pedro consentiu com a cabeça, “Pois bem, há muitos anos nós não caçamos aqui no Brasil do Sul. Nós produzimos nossa proteína animal, necessária para a vida, em laboratório...”, “Está é a sua profissão, certo papai?”, interrompeu Pedro. “Isso mesmo, sou cientista da Friedman. Bem como dizia...
“...Há muitos anos nós não caçamos aqui no Brasil do Sul. Nossos tataravós também não caçavam, mas eles comiam a carne que provinha da morte horrível de animais inocentes. Hoje nós sabemos que os animais são nossos amigos e que mantê-los vivos é uma forma de equilibrar as forças do planeta e acalmar seus eventos catastróficos. Mas não se preocupe! Desde que a criação de Gado deixou de existir aqui em nosso pais e o metano deixou de ser lançado em nosso ar, a floresta e as temperaturas estão voltando ao equilíbrio. Nossa população vive mais e somos mais felizes”, enquanto concluía seu texto, o mesmo que apresentava em palestras para iniciantes no emprego, um comercial cortou a todos. Vinha da televisão: “É Carne? É Tipo Carne!”, era o slogan do produto.

Pedro tinha dúvidas pertinentes, mas não sabia como pergunta-las. Era difícil para ele, mas para os outros garotos era simples. Pedro na verdade tinha medo de ser “carnivorista”, assim como seu tio Edgar. Resolveu encerrar agradecendo ao pai e foi ao computador redigir seu texto. “Sandra, diga-me como foi?”, perguntou o pai. “É uma criança como todas as outras e tem repulsa a caça e a comida de morte [assim chamavam a que vinha exclusivamente do animal]”. Altinori ia adiante: “o fascínio pela carne no início é normal. Instintivo, diria. Mas a grande maioria da população não está ligada de forma visceral e orgânica a sua alimentação. Somos a raça dominante neste planeta e resolvemos não matar animais. Estamos certos! Não é porque pouco carnivoristas querem revogar a lei ou liberar a carne de morte que vamos desistir. Somos pessoas de bem, Sandra. Não podemos permitir esse tipo de gente no metrô, nas ruas, nas calçadas móveis, nos tuk-tuks.  Onde vamos parar?”. Sandra se aproximou, “Altinori, por favor se acalme! Meu irmão foi detido na fronteira de São Paulo com o Brasil do Norte traficando carne de porco. Ele está respondendo pelos seus crimes contra a nação, mas não acho que ele seja carnivorista, isso seria muita humilhação para nossa família. Como eu contaria para mamãe?”.