O pequeno Pedro apertava
a mão de sua mãe com tanta força que quase lhe quebrara os dedos. Seu rosto
estava vidrado no que estava vendo. Seus poros se abriam para que liquido
salgado do suor pudesse descer-lhe a face. Estava nervoso, era fato. Mas a
experiência sempre foi necessária desde que imposta pelo governo à dez anos. O “Dia
da Caça” não era uma data comum. Ela é, e sempre será necessária, para que
todos os jovens, meninos e meninas, soubessem o quanto o ser humano havia sido
cruel. Pelo menos era assim que queria o Governo. “Matar para comer, mamãe? Que
coisa horrorosa!!”, disse Pedro. Já havia soltado a mão. “A caça teve papel
importante em nossa história, meu filho”, disse Sandra, sua mãe. Andaram mais
um pouco sobre o salão do museu da caça, lotado naquele dia como de costume.
Pararam em frente de um vídeo. Um selvagem caçando um gnu com lanças e flechas.
“Veja Pedro!”, apontou-lhe a TV, “Veja como os selvagens se comportavam. Mas
nós devemos muito a eles. Somente com a ingestão de carne animal é que pudemos
desenvolver nosso intelecto ao ponto de não precisarmos matar nenhum ser vivo
para comer carne”.
Estamos em 2155, São
Paulo. Os dias são constantemente nublados. A garoa, da “terra da garoa”, se
tornara acida, não tanto quanto um limão, mas o suficiente para destruir, em
médio prazo, pontes, prédios e estatuas. As pessoas andam rápido na calçada.
Sempre andaram. Nos telões o noticiário apresenta as mesmas notícias: corrupção
do governo, crise hídrica se agrava com o entupimento de umas das tubulações da
transposição do rio Amazonas, um presidente mulçumano na França assume o cargo,
uma colônia em Marte insiste em ter independência da Terra, etc. etc. etc.
Pedro movimenta as pernas
rapidamente para acompanhar o caminhar de sua mãe. No alto do seus 12 anos
muitas questões lhe vinham a mente. “Como assim, caçar para comer? Que absurdo!
Que errado! Por que, errado?”, pensava. Entraram no metrô enfim. “Precisamos
que você faça um redação quando chegarmos em casa, Pedrinho. Depois vamos
submeter ao governo e então estaremos livres dessa obrigação. Aí depois podemos
ir numa sorveteria, o que acha?”, Sandra falava sempre sorrindo, como se incentiva-se
o entusiasmo do filho, “Acho bem legal, mãe”, Pedro retribuiu o sorriso. Toda
criança de 12 anos devia, por decreto, submeter um redação na qual compartilhava
com o Estado sua experiência no “Dia da Caça”. Era uma forma do Estado
controlar este impulso nos mais jovens, pois, quando adultos, devem permanecer
a se alimentar da carne de laboratório: mais saudável, pois não tem gordura, e
mais “ética” pois não precisou de nenhuma morte para sua criação. Há um motivo
político também. O partido que governa o Brasil do Sul é dono do único frigorifico
de carne de laboratório do país: as Industrias Fridman, para quem o pai de
Pedro trabalhava. O Doutor Altinori não cortava carnes em um frigorifico, mas
sim criava sabores em um laboratório. Frango, Porco, Boi, Pato. Até tartaruga,
quem diria? Todos os pedaços feitos a partir da extração da célula tronco dos
animais, de forma indolor e sem mortes. A Organização das Nações Unidas
aprovava e incentivava o mundo a adotar a carne de laboratório, fato que
aumentava exponencialmente nos países pelo mundo e que enchia o bolso de
algumas empresas ao redor do globo.
Era Domingo. Altinori não
tinha ido trabalhar. Estava em casa descansando quando viu Pedro atravessar a
sala correndo e pular no seu colo, “oi, papai! Como foi seu dia?”, disse o
menino. “Descansei bastante, mas queria ter acompanhado vocês no museu. Como
foi?”, indagou. “Ele tem muitas dúvidas, querido. Talvez você possa ajuda-lo”,
era Sandra, entrando pela porta da sala e tirando o casaco preto, assim como
seus cabelos que contrastavam com a pele branca. “Evidente que sim”, respondeu
seu esposo e começou: “Aposto que viu muitos vídeo de caça, de sofrimento
animal e de morte, correto?”, Pedro consentiu com a cabeça, “Pois bem, há
muitos anos nós não caçamos aqui no Brasil do Sul. Nós produzimos nossa proteína
animal, necessária para a vida, em laboratório...”, “Está é a sua profissão,
certo papai?”, interrompeu Pedro. “Isso mesmo, sou cientista da Friedman. Bem
como dizia...
“...Há muitos anos nós
não caçamos aqui no Brasil do Sul. Nossos tataravós também não caçavam, mas
eles comiam a carne que provinha da morte horrível de animais inocentes. Hoje
nós sabemos que os animais são nossos amigos e que mantê-los vivos é uma forma
de equilibrar as forças do planeta e acalmar seus eventos catastróficos. Mas
não se preocupe! Desde que a criação de Gado deixou de existir aqui em nosso
pais e o metano deixou de ser lançado em nosso ar, a floresta e as temperaturas
estão voltando ao equilíbrio. Nossa população vive mais e somos mais felizes”,
enquanto concluía seu texto, o mesmo que apresentava em palestras para
iniciantes no emprego, um comercial cortou a todos. Vinha da televisão: “É
Carne? É Tipo Carne!”, era o slogan do produto.
Pedro tinha dúvidas
pertinentes, mas não sabia como pergunta-las. Era difícil para ele, mas para os
outros garotos era simples. Pedro na verdade tinha medo de ser “carnivorista”,
assim como seu tio Edgar. Resolveu encerrar agradecendo ao pai e foi ao
computador redigir seu texto. “Sandra, diga-me como foi?”, perguntou o pai. “É
uma criança como todas as outras e tem repulsa a caça e a comida de morte
[assim chamavam a que vinha exclusivamente do animal]”. Altinori ia adiante: “o
fascínio pela carne no início é normal. Instintivo, diria. Mas a grande maioria
da população não está ligada de forma visceral e orgânica a sua alimentação.
Somos a raça dominante neste planeta e resolvemos não matar animais. Estamos certos!
Não é porque pouco carnivoristas querem revogar a lei ou liberar a carne de
morte que vamos desistir. Somos pessoas de bem, Sandra. Não podemos permitir
esse tipo de gente no metrô, nas ruas, nas calçadas móveis, nos tuk-tuks. Onde vamos parar?”. Sandra se aproximou, “Altinori,
por favor se acalme! Meu irmão foi detido na fronteira de São Paulo com o
Brasil do Norte traficando carne de porco. Ele está respondendo pelos seus
crimes contra a nação, mas não acho que ele seja carnivorista, isso seria muita
humilhação para nossa família. Como eu contaria para mamãe?”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário