sábado, 17 de janeiro de 2015

Carne - Parte 1 - Dia da Caça

O pequeno Pedro apertava a mão de sua mãe com tanta força que quase lhe quebrara os dedos. Seu rosto estava vidrado no que estava vendo. Seus poros se abriam para que liquido salgado do suor pudesse descer-lhe a face. Estava nervoso, era fato. Mas a experiência sempre foi necessária desde que imposta pelo governo à dez anos. O “Dia da Caça” não era uma data comum. Ela é, e sempre será necessária, para que todos os jovens, meninos e meninas, soubessem o quanto o ser humano havia sido cruel. Pelo menos era assim que queria o Governo. “Matar para comer, mamãe? Que coisa horrorosa!!”, disse Pedro. Já havia soltado a mão. “A caça teve papel importante em nossa história, meu filho”, disse Sandra, sua mãe. Andaram mais um pouco sobre o salão do museu da caça, lotado naquele dia como de costume. Pararam em frente de um vídeo. Um selvagem caçando um gnu com lanças e flechas. “Veja Pedro!”, apontou-lhe a TV, “Veja como os selvagens se comportavam. Mas nós devemos muito a eles. Somente com a ingestão de carne animal é que pudemos desenvolver nosso intelecto ao ponto de não precisarmos matar nenhum ser vivo para comer carne”.
Estamos em 2155, São Paulo. Os dias são constantemente nublados. A garoa, da “terra da garoa”, se tornara acida, não tanto quanto um limão, mas o suficiente para destruir, em médio prazo, pontes, prédios e estatuas. As pessoas andam rápido na calçada. Sempre andaram. Nos telões o noticiário apresenta as mesmas notícias: corrupção do governo, crise hídrica se agrava com o entupimento de umas das tubulações da transposição do rio Amazonas, um presidente mulçumano na França assume o cargo, uma colônia em Marte insiste em ter independência da Terra, etc. etc. etc.
Pedro movimenta as pernas rapidamente para acompanhar o caminhar de sua mãe. No alto do seus 12 anos muitas questões lhe vinham a mente. “Como assim, caçar para comer? Que absurdo! Que errado! Por que, errado?”, pensava. Entraram no metrô enfim. “Precisamos que você faça um redação quando chegarmos em casa, Pedrinho. Depois vamos submeter ao governo e então estaremos livres dessa obrigação. Aí depois podemos ir numa sorveteria, o que acha?”, Sandra falava sempre sorrindo, como se incentiva-se o entusiasmo do filho, “Acho bem legal, mãe”, Pedro retribuiu o sorriso. Toda criança de 12 anos devia, por decreto, submeter um redação na qual compartilhava com o Estado sua experiência no “Dia da Caça”. Era uma forma do Estado controlar este impulso nos mais jovens, pois, quando adultos, devem permanecer a se alimentar da carne de laboratório: mais saudável, pois não tem gordura, e mais “ética” pois não precisou de nenhuma morte para sua criação. Há um motivo político também. O partido que governa o Brasil do Sul é dono do único frigorifico de carne de laboratório do país: as Industrias Fridman, para quem o pai de Pedro trabalhava. O Doutor Altinori não cortava carnes em um frigorifico, mas sim criava sabores em um laboratório. Frango, Porco, Boi, Pato. Até tartaruga, quem diria? Todos os pedaços feitos a partir da extração da célula tronco dos animais, de forma indolor e sem mortes. A Organização das Nações Unidas aprovava e incentivava o mundo a adotar a carne de laboratório, fato que aumentava exponencialmente nos países pelo mundo e que enchia o bolso de algumas empresas ao redor do globo.
Era Domingo. Altinori não tinha ido trabalhar. Estava em casa descansando quando viu Pedro atravessar a sala correndo e pular no seu colo, “oi, papai! Como foi seu dia?”, disse o menino. “Descansei bastante, mas queria ter acompanhado vocês no museu. Como foi?”, indagou. “Ele tem muitas dúvidas, querido. Talvez você possa ajuda-lo”, era Sandra, entrando pela porta da sala e tirando o casaco preto, assim como seus cabelos que contrastavam com a pele branca. “Evidente que sim”, respondeu seu esposo e começou: “Aposto que viu muitos vídeo de caça, de sofrimento animal e de morte, correto?”, Pedro consentiu com a cabeça, “Pois bem, há muitos anos nós não caçamos aqui no Brasil do Sul. Nós produzimos nossa proteína animal, necessária para a vida, em laboratório...”, “Está é a sua profissão, certo papai?”, interrompeu Pedro. “Isso mesmo, sou cientista da Friedman. Bem como dizia...
“...Há muitos anos nós não caçamos aqui no Brasil do Sul. Nossos tataravós também não caçavam, mas eles comiam a carne que provinha da morte horrível de animais inocentes. Hoje nós sabemos que os animais são nossos amigos e que mantê-los vivos é uma forma de equilibrar as forças do planeta e acalmar seus eventos catastróficos. Mas não se preocupe! Desde que a criação de Gado deixou de existir aqui em nosso pais e o metano deixou de ser lançado em nosso ar, a floresta e as temperaturas estão voltando ao equilíbrio. Nossa população vive mais e somos mais felizes”, enquanto concluía seu texto, o mesmo que apresentava em palestras para iniciantes no emprego, um comercial cortou a todos. Vinha da televisão: “É Carne? É Tipo Carne!”, era o slogan do produto.

Pedro tinha dúvidas pertinentes, mas não sabia como pergunta-las. Era difícil para ele, mas para os outros garotos era simples. Pedro na verdade tinha medo de ser “carnivorista”, assim como seu tio Edgar. Resolveu encerrar agradecendo ao pai e foi ao computador redigir seu texto. “Sandra, diga-me como foi?”, perguntou o pai. “É uma criança como todas as outras e tem repulsa a caça e a comida de morte [assim chamavam a que vinha exclusivamente do animal]”. Altinori ia adiante: “o fascínio pela carne no início é normal. Instintivo, diria. Mas a grande maioria da população não está ligada de forma visceral e orgânica a sua alimentação. Somos a raça dominante neste planeta e resolvemos não matar animais. Estamos certos! Não é porque pouco carnivoristas querem revogar a lei ou liberar a carne de morte que vamos desistir. Somos pessoas de bem, Sandra. Não podemos permitir esse tipo de gente no metrô, nas ruas, nas calçadas móveis, nos tuk-tuks.  Onde vamos parar?”. Sandra se aproximou, “Altinori, por favor se acalme! Meu irmão foi detido na fronteira de São Paulo com o Brasil do Norte traficando carne de porco. Ele está respondendo pelos seus crimes contra a nação, mas não acho que ele seja carnivorista, isso seria muita humilhação para nossa família. Como eu contaria para mamãe?”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário